Quem me conhece sabe que sou uma mulher de normas. Adoro a sigla ISO.

E isto tem uma explicação muito simples: sou preguiçosa. Tudo que sirva para me poupar trabalho tem a minha adesão imediata. Se existe uma norma, não é preciso perder tempo a problematizar, conceptualizar e justificar opções: alguém já o fez por nós e deixou pronto a usar. O que é que se pode querer mais?

Bom, pode querer-se que as normas façam sentido.

Em geral, fazem. Em geral são o resultado do trabalho de gente séria, que se esforçou para encontrar a melhor solução para um problema que afectava muita gente. Fazer uma norma é trabalhar para o bem comum, é do mais nobre que há.

Por isso, no momento em que inicio a recolha e tratamento de dados que quero analisar numa perspectiva espacial, fiquei toda contente quando descobri que existe uma directiva que estabelece uma infra-estrutura de informação geográfica na Comunidade Europeia (Inspire). Uma parte do problema já estava resolvida! Ainda por cima, sendo a legislação europeia publicada em todas as línguas comunitárias, nem me precisava de preocupar com a tradução.

Fiquei ainda mais entusiasmada quando descobri que um dos tipos de objecto geográfico considerado tinha a categoria temática “Sítios protegidos”. Ok, já sabia que os atributos teriam mais a ver com a protecção legal do que com a caracterização histórica e contextual dos ditos objectos, mas havia regulamentos com listas controladas de terminologia. Fantástico!

Comecei por consultar em inglês e verifiquei que a lista de códigos autorizados para “NationalMonumentsRecordDesignationValue” era sensivelmente a mesma do NMR Monument Type Thesaurus . Pois claro. Os senhores doEnglish Heritage há anos que se fartam de trabalhar para nós, a produzir normas sólidas e bem fundamentadas, só se o legislador europeu fosse estúpido é que se ia por a inventar coisas diferentes.

Foi com entusiasmo que segui a ligação para a publicação em português deste regulamento, já que, também há anos, ando a dizer que a solução de muitos dos problemas de gestão de informação relativa ao património cultural português passa por… traduzir os thesauri e as normas do English Heritage.

E a tradução portuguesa foi um balde água fria neste entusiasmo todo. Ainda sou capaz de aceitar algumas imprecisões que resultam da opção de uma tradução demasiado literal das definições, mas como é que é possível traduzir:

The Protected Site is classified as a settlement under the National Monuments Record classification scheme

por

O sítio protegido é classificado como monumento ligado à colonização no âmbito do sistema de classificação do Registo de Monumentos Nacionais

??!

É verdade que a expressão settlement é lixada. Aliás, curiosamente ou talvez não, é a única expressão desta lista que não faz parte das Classes do NMR Monument Type Thesaurus. É uma expressão que os arqueólogos adoram: serve para quase tudo, sobretudo para aquilo em que não há dados suficientes para classificar de outra maneira…

Os anglo-saxónicos são muito mais práticos e económicos na linguagem que nós, por isso settlement resulta na perfeição. Em português, assentamento não é bem a mesma coisa… Embora haja muitos colegas meus que usem a expressão no sentido de settlement e os espanhóis tenham incorporado essa asserção sem problemas no castelhano. Podia ter sido traduzido como assentamento. Podíamos ter feito como os franceses [établissement humain]  e usado a expressão “estabelecimento humano” ou, embora mais comprido mas mais claro, “área de ocupação humana”; ou como os italianos [insediamento (settlement)] e os romenos [așezare (settlement)] que, pelos vistos, também não se sentiram confortáveis com a tradução e incluíram a expressão inglesa entre parêntesis.

Mas nunca, nunca, traduzir settlement por colonização. É que nem nos tradutores automáticos que usei na internet tive esse resultado. Como é que isto é possível quando a própria União Europeia tem uma base de dados de terminologia em que se encontram propostas bem melhores para a tradução do termo?!

Traduzir settlement por colonização está para além da incompetência: é uma vergonha.

Sinto-me envergonhada porque falo português mas também porque sou arqueóloga. Talvez haja asneiras relativas a outras áreas temáticas e eu só dei conta desta porque é exactamente da minha disciplina. Mas não me pareceu. Infelizmente, estou habituada a que a área do “Património Cultural” seja sempre a que é tratada de forma menos rigorosa e profissional. E menos normalizada.

Os “tipos da cultura” em Portugal são avessos a normas. Vimos maioritariamente das Faculdades de Letras e isso não ajuda muito a uma abordagem mais técnica e científica da nossa profissão.  Há muitos anos (quase antes de Cristo), no primeiro encontro a que fui sobre “Normalização em Museus” em Guimarães, ouvi dizer num debate: “Nós não podemos cortar a criatividade dos nossos técnicos pondo-os a fazer inventários!”

Inventários, normas, sistemas de informação são chatos de fazer. Mantê-los então é do pior… É muito mais fácil e divertido dizer “o meu trabalho é muito específico, isso não me serve.” E assim se vão acumulando dados que só são úteis para quem os recolheu e, mesmo para essa pessoa, frequentemente só uma vez: novo projecto, nova viagem, a informação recolhida antes também não serve… Pode ser fácil rejeitar a normalização como princípio, mas dá muito mais trabalho a médio e longo prazo.

Fiquei um bocadinho triste com esta história da tradução, mas vale a pena seguir os princípios da directiva INSPIRE * também no que diz respeito à informação relativa ao Património Cultural, tenha ou não expressão espacial. Sobretudo o primeiro, aquele que diz “Data should be collected only once…“

Maria José de Almeida

* a ligação é para o documento original porque, custa-me dizer mas é verdade, a tradução portuguesa no portal do SNIT também não é a mais feliz…