As mãos vêem [e os sistemas de informação ajudam] – Maria José de Almeida

As mãos vêem [e os sistemas de informação ajudam] – Maria José de Almeida

Faço sempre isto com as bases de dados que consulto pela primeira vez: procuro uma coisa que conheço bem, que sei que lá está ou tenho a expectativa que esteja. Testo as funcionalidades de pesquisa e exploro a partir daí.

História das Exposições de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian. Vamos a isto.

Insiro os termos na caixa de pesquisa que aparece na página de entrada: as mãos vêem.

“Não encontramos resultados para a sua pesquisa.…” [assim mesmo, com quatro pontos]. Siga então para a pesquisa avançada. Não é muito linear, essa opção não me aparece na página onde estou e me dizem do insucesso da minha pesquisa. Mas eu tenho anos disto.

Separador “Explore” [se eu não tivesse anos disto, seria fácil perceber que é aqui que encontro a pesquisa avançada?]. Quero encontrar uma exposição, é isso que escolho. Cá está ela, a pesquisa avançada por atributos e logo a primeira caixa  tem preenchido por defeito que o campo a pesquisar será “título”. É isto mesmo:  as mãos vêem.

1 registos

As Mãos Vêem

1980 / Itinerância Portugal

Primeiro choque, antes mesmo de seguir a ligação: 1980?!

Não há dúvida na página seguinte:

3 mar 1980 – mar 1980

Fundação Calouste Gulbenkian / Museu Calouste Gulbenkian – Galeria de Exposições Temporárias

Lisboa, Portugal

Em Abril já estava no Porto.

Em Março de 1980 eu ainda não tinha feito 10 anos. Como é que eu me lembro tão bem desta exposição?!

Lembro-me muito bem desta exposição.

Lembro-me que era uma exposição para cegos. Dizíamos assim, claro, a minha mãe tinha alunos cegos no Passos Manuel, a antiga casa do reitor era onde funcionava o gabinete de apoio aos cegos. Lembro-me de ajudar a minha mãe a preparar as aulas de geometria para esses alunos. Alguém lhe dever ter dito que era uma boa ideia, talvez as pessoas que trabalhavam na casa do reitor, e ela reproduzia: umas placas de cortiça onde se espetavam alfinetes onde se queriam os vértices das figuras e depois esticavam-se fios para as desenhar. Assim os alunos cegos podiam ver com as mãos, tacteando os fios, e fazer os mesmos exercícios que os outros que viam com os olhos. Eu gostava de esticar os fios, escolhia cores diferentes por figura. Imagino que hoje se ensine geometria a crianças invisuais de outra forma e que os professores tenham formação específica mas, muito provavelmente, continuam a trabalhar em casa com as suas próprias crianças a ajudar na preparação de (outros) materiais didáticos.

Não sei se a minha mãe nos levou a ver esta exposição porque tinha essa experiência de ensino ou se nos levou porque nos levava a todas as exposições que havia em Lisboa. Não eram muitas por essa altura.

Fomos e eu lembro-me muito bem. Vendavam-nos à entrada, nós seguíamos pela mão dos monitores (monitoras?) e íamos a muitos sítios diferentes. Lembro-me de estar numa quinta, sentir grãos de feijão num saco, o cheiro do rosmaninho.

Lembro-me, sobretudo, que no fim nos tiravam a venda e nós íamos de olhos abertos aos mesmos sítios onde tínhamos estado. Lembro-me que eram uns caixotes muito feios, os cheiros eram essências nuns frascos pequeninos.

Confrontando a minha memória com a descrição que está nesta base de dados, não consigo de todo fazê-la bater certo com as sete secções que a compunham: para mim se havia alguma compartimentação era por tipologia de espaço. Segundo o arquivo havia uma “Cidade” mas não havia nenhuma “Quinta”. A memória do saco de feijão (ou grão?) seria na secção “Enterrar”? Já os cheiros… podem ter sido em qualquer uma. Também não me lembro de ser conduzida por uma corda, mas sim por pessoas, e muito menos do “tabuleiro-carrilhão musical de oito notas que se tocava com os pés, marcando a passagem sonora de cada pessoa”. As imagens que são disponibilizadas da exposição mostram-me que os caixotes não eram assim tão feios.

Se a Fundação Gulbenkian não tivesse decidido disponibilizar publicamente este arquivo ficava só com as minhas memórias, que não são nem certas nem erradas. Mas poder confrontá-las com este sistema de informação deu contexto à minha memória. A começar pela data de realização. Saber que tive esta experiência quando tinha apenas 9 anos é importante para mim. É importante também saber que não foi só a mim que esta exposição impressionou, porque aqui se fala do impacto social que provocou num país tão diferente do que é hoje. Mas, acima de tudo, é importante que aqueles que não têm nenhuma memória desta exposição possam vê-la sem a ter visto.

E isso está diretamente ligado com a minha memória mais forte e significativa. O momento em que vi com os olhos o que tinha visto com as mãos foi de espanto e revelação: podemos estar em sítios sem estar.

Quarenta anos depois, percebo que se calhar esta exposição é mais definidora da minha ideia de museu do que todos as outras que visitei, em cujas equipas trabalhei ou que concebi. Definitivamente muito mais do que tudo o li ou ouvi sobre museus.

Passo a vida a dizer isto: o que me interessa é a informação, a história que se conta, a memória que se constrói, não há um valor absoluto na materialidade das coisas. O que é isto senão a exposição que vi, em março de 1980, na Fundação Calouste Gulbenkian?

 Maria José de Almeida

Maria José de Almeida é Doutora em Arqueologia pela Universidade de Lisboa.

Até 2016 trabalhou nos municípios de Santarém e Cascais, desenvolvendo ações de arqueologia preventiva e gestão de coleções de bens arqueológicos. Foi responsável pela implementação do Sistema de Informação dos Museus de Cascais e coordenou a integração do mesmo na plataforma de Sistema de Informação Geográfica da autarquia. Fez parte dos corpos gerentes da Associação Profissional de Arqueólogos (APA) desde 2002, tendo sendo presidente da direção no triénio 2007-2009. É membro do Grupo de Trabalho Sistemas de Informação em Museus da Associação Portuguesa de Bibliotecários, Arquivistas e Documentalistas (BAD).

Atualmente integra a equipa da Direção de Serviços de Inovação e Administração Eletrónica da Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB).

Curriculum detalhado aqui.

Navegar ou pesquisar? Eis a questão – Maria José de Almeida

Navegar ou pesquisar? Eis a questão – Maria José de Almeida

Há algum tempo, trabalhando numa organização muito pouco organizada no que à gestão de informação dizia respeito, percebi que existia uma duplicação brutal de dados que resultava da dificuldade que os utilizadores tinham em localizar ficheiros nos discos partilhados na rede. A organização de pastas era de tal forma pessoal e intransmissível que ninguém encontrava nada quando ia à procura. A solução era recorrente: cópia do ficheiro para o sítio “que eu sei” e circulação posterior por correio eletrónico. Não preciso de explicar a confusão gerada na gestão de informação, no desempenho dos sistemas e nos custos associados ao armazenamento de dados (não é por não falarmos neles que eles não existem).

Para facilitar a vida no meu serviço, fiz uma tabela muito simples em que se identificavam os ficheiros pelo nome, descrição sumária do conteúdo e – o mais importante – que continha uma ligação para a localização dos ditos na rede. Não era a revolução necessária para reverter décadas de má prática de gestão documental, mas dava para o gasto e estancava a duplicação de informação e o entupimento do correio eletrónico. Ou melhor, deu, durante uns tempos. Porque há um dia em que começo a receber telefonemas de gente aos gritos “os links não funcionam!”, ocasionalmente acompanhados de outra linguagem técnica que me abstenho de reproduzir.

O que é que tinha acontecido? Um utilizador tinha acrescentado (e, para ajudar à festa, aleatoriamente ou com uma lógica que só ele percebia) um # no início do nome de alguns  ficheiros. Foi a minha vez de largar alguma sonora linguagem técnica e, depois do alívio causado, perguntar: “Porquê?” Resposta: “Ah, é que assim quando abro o explorador estes aparecem em cima”.

Durante muito tempo tomei esta história como exemplo de iliteracia digital mas, uns anos passados a pensar sobre gestão de informação, percebo que é exemplo de muito mais que isso. O mundo divide-se entre os que navegam e os que pesquisam.

Dito de uma forma mais concreta, este utilizador esperava recuperar informação através da forma como ela estava armazenada e, consequentemente, lhe era apresentada no ecrã. Enfim, podemos questionar o critério do “em cima = mais importante para mim neste momento por razões que só eu sei”, mas a ideia é essa. Há outra metade do mundo, contudo, que espera recuperar a informação através da forma como ela está descrita e, consequentemente, lhe é apresentada como resposta a uma pergunta.

A tentação de associar os que navegam à tecnologia analógica e os que pesquisam à tecnologia digital é grande, mas a coisa não é assim tão linear. Efetivamente, a forma mais antiga e tradicional de recuperar informação tem a ver com a “arrumação”: se quero um romance português vou encontrá-lo na prateleira da literatura de língua portuguesa, se quero um ofício expedido vou encontrá-lo na pasta das saídas, se quero uma ponta de seta vou encontrá-la no contentor dos materiais líticos. Não repetindo algo que já escrevi aqui, não havia grandes alternativas até há bem pouco tempo e a tecnologia digital é o grande aliado dos motores de busca. Mas o melhor sistema para os que navegam, hoje em dia, é seguramente digital.

A diferença entre navegar ou pesquisar vai para além da tecnologia. É uma questão de conceitos e de expectativas. Se eu prefiro navegar, o sistema de organização da informação é mais importante que a caracterização do objeto de informação. Se eu prefiro pesquisar, a caracterização do objeto de informação é mais importante que o sistema de organização da informação.

O que é que é melhor? Bom, eu sou dos que pesquisam… A história que comecei por contar parece-me mostrar que os sistemas de arrumação (em caixotes ou em cadeias binárias, vai dar igual) são demasiado voláteis para confiarmos neles. E também me fazem confusão as práticas que valorizam mais a forma como se organizam os objetos de informação do que… os próprios objetos de informação. Além de que esse tipo de práticas tendem a resultar em formas de recuperação de informação que são muito eficazes para quem conhece o sistema mas completamente crípticas para quem chega lá vindo de outro sítio.

Contudo, confiar exclusivamente na descrição para que os resultados das pesquisas sejam consequentes também não é um mar de rosas. Se não houver rigor e normalização na terminologia, nos atributos e nos procedimentos usados na descrição, mais vale não descrever nada e investir na arrumação dos objetos no “sítio certo”. Ou então confiar na serendipidade…

A boa notícia é que navegar e pesquisar não são conceitos mutuamente exclusivos. Qualquer página na internet nos prova. No entanto, é fundamental perceber quais são as expectativas dos utilizadores quando se concebe um sistema de informação: não vale a pena investir um tempo imenso no sistema de organização se os utilizadores vão querer fazer perguntas transversais e que cruzam atributos de objetos arrumados em caixotes diferentes. Ou, em alternativa, o tempo gasto na descrição pode ser contraproducente se os utilizadores apenas vão estar preocupados em localizar rapidamente as caixas onde se guarda a informação.

Porque, como tudo na vida, o que interessa é que o sistema seja eficaz para quem o usa. Para a maioria, vá. Que também ainda não se inventou melhor forma de vivermos em conjunto.

Imagem daqui.

 Maria José de Almeida

Maria José de Almeida é Doutora em Arqueologia pela Universidade de Lisboa.

Até 2016 trabalhou nos municípios de Santarém e Cascais, desenvolvendo ações de arqueologia preventiva e gestão de coleções de bens arqueológicos. Foi responsável pela implementação do Sistema de Informação dos Museus de Cascais e coordenou a integração do mesmo na plataforma de Sistema de Informação Geográfica da autarquia. Fez parte dos corpos gerentes da Associação Profissional de Arqueólogos (APA) desde 2002, tendo sendo presidente da direção no triénio 2007-2009. É membro do Grupo de Trabalho Sistemas de Informação em Museus da Associação Portuguesa de Bibliotecários, Arquivistas e Documentalistas (BAD).

Atualmente integra a equipa da Direção de Serviços de Inovação e Administração Eletrónica da Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB).

Curriculum detalhado aqui.