Um dia recebi um email assinado por alguém que não conhecia e se identificava como técnica superior da DGLAB. Tinha lido um artigo que eu tinha publicado e queria saber mais sobre a forma como aplicava o modelo de dados CIDOC-CRM à informação arqueológica.

A primeira reação que tive foi a óbvia: mas alguém lê a literatura cinzenta que nós escrevemos?! Depois, respondi a medo: talvez o texto tivesse dado uma dimensão à coisa que ela não tinha, tratava-se singelamente da metodologia que estava a aplicar no meu trabalho de doutoramento, um assunto muito específico, ainda por cima não integrado em nenhum projeto para além do académico e sem qualquer enquadramento institucional. Mas ficava muito contente com o interesse da DGALB na aplicação da ontologia e, sobretudo, na valorização da normalização no tratamento de informação de índole cultural. Enviei a resposta com a certeza de que o assunto ficava fechado. Não ficou. Pouco tempo depois tenho na caixa de correio uma nova mensagem, da mesma pessoa, a dizer que sim, tinham percebido tudo o que eu dizia, mas gostavam de conversar comigo para a profundar o tema, se eu tivesse disponibilidade de me deslocar ao edifício da Torre do Tombo até podíamos marcar uma reunião.

Acho que estava de férias, ou a usufruir da jornada contínua ao abrigo do estatuto de trabalhador estudante, e lá fui numa tarde qualquer. Fui recebida pela pessoa que me tinha enviado o email, pelo chefe dela e por um outro elemento da equipa. A conversa foi animada, interessante, há muito tempo que não falava com pessoas que entendiam tão bem a forma como eu acho que se deve tratar a informação. Quando saí, a caminho do metro, telefonei ao Alexandre: “Ó pá, isto foi muito estranho, eles queriam mesmo saber o que eu penso, queriam mesmo discutir a aplicação do CIDOC-CRM! Juro que não percebi nada do que acabou de acontecer…”

Demorei um bocadinho a perceber. Houve mais trocas de emails, de bibliografia, conversas, até ao momento em que eu disse ao Francisco Barbedo: mas o que é que vocês precisam? Uma instituição ou uma pessoa? É que se precisam de uma instituição eu não vos posso ajudar, não represento coisa nenhuma; se precisam de uma pessoa, esta pessoa é funcionária pública e está disponível para vir trabalhar convosco se quiserem iniciar um processo de mobilidade. Nesta altura o Francisco já tinha nome, já não era “o chefe da pessoa que me mandou um email”. E foi só quando o Francisco passou a ser o meu chefe é que eu percebi o que se passava na Direção de Serviços de Inovação e Administração Eletrónica (DSIAE) da DGLAB.

Imagem: Cecília Henriques

É engraçado que quando cheguei à DGLAB, em Outubro de 2016, já levava 20 anos de administração pública e uma boa dose de diferentes chefias. E nunca me referi a elas como “o meu chefe”, achava até um bocadinho parola a expressão. Talvez porque a nenhuma das minhas chefias eu reconheci capacidade de liderança, nunca achei que fizessem alguma coisa que qualquer outra pessoa não soubesse fazer e, infelizmente em alguns casos, provavelmente melhor. Mas não era esse o caso do Francisco. Ele foi o meu chefe no melhor sentido que a palavra pode ter. Aliás, no único sentido: se não for nesse, não se deve usá-la. Não é uma questão de parolice, é rigor semântico.

Aquilo que eu achei estranho no contacto inicial que tive com a DSIAE percebi muito bem depois. O Francisco era assim. Mas sobre isso eu não sei nada!… Então mas não há ninguém a trabalhar isso? Há uns tipos do sítio tal, mas… Veja lá isso, investigue, pergunte-lhes se for preciso. Nunca eu tinha tido uma chefia que me mandasse estudar. Estudei, aprendi. E muito mais que conhecimento técnico. Aprendi como se pode respeitar profundamente uma equipa de trabalho de uma forma subtil e eficaz. Aprendi o comprometimento com a coisa pública no sentido mais nobre que pode haver: porque sim, porque é para fazer bem porque é para todos. Tão simples quanto isso.

Como se isso não bastasse, o Francisco tinha sentido de humor. E é uma bênção trabalhar com alguém com sentido de humor. Humor também subtil, o que levava frequentemente o interlocutor à dúvida da seriedade da conversa e aumentava a saudável gargalhada quando se desfazia o equívoco. Nos primeiros tempos na DGLAB, o Francisco sugeriu-me que eu passasse uns dias em cada serviço, dos que estão sediados na Torre do Tombo, para perceber o seu funcionamento e aquilo que cada um deles precisava dos sistemas de informação. Aceitei com entusiasmo, também nunca tinha sido recebida assim nas muitas mudanças que fiz. Sempre que me apresentava em cada sítio, toda a gente, ansiosa que estava (está?) pela integração de um técnico superior de informática, achava que era essa a minha especialidade. Não é nada informática, é arqueóloga, esclarecia ele. E havia ali um momento absurdo em que eu continuava a ser interrogada como técnica de informática, porque os outros achavam que isso era uma piada, eu tentava explicar que não era, com a atrapalhação dos primeiros dias, e o Francisco continuava lançar achas para a fogueira da confusão, a divertir-se tanto com a minha atrapalhação como com a incredulidade dos interlocutores.

Mas é mesmo verdade: eu sou a arqueóloga que o Francisco trouxe para a DGLAB. E tenho um orgulho imenso nisso. Tenho um orgulho imenso em trabalhar numa das poucas entidades da administração pública portuguesa que levou o PGTIC a sério e em participar no processo de transição tecnológica para aplicações de código aberto. E na preservação digital, e no novo modelo de dados e em tantas outras coisas em que o Francisco se emprenhou e deixou uma marca indelével.

O dia 4 de Setembro foi o meu último dia de trabalho antes de um longo período de férias, marcadas em pleno confinamento a imaginar que este mês de Setembro podia ser muita coisa que não foi. Passei pelo gabinete do Francisco ao fim da tarde. Sobretudo para lhe dizer que não esperasse por mim para marcar as reuniões com os serviços que me calhavam nos testes das interfaces do novo sistema; àquela distância não tinha nenhum compromisso previsível e era importante começar a sincronizar as atarefadas agendas de toda a gente em Outubro. Como habitualmente, o Francisco disse para não me preocupar, que fosse de férias e gozou com o meu relógio de enfermeira. Perguntou-me se ia para fora, expliquei que tinha desistido de ir a Itália com receio de ficar presa em trânsito por qualquer alteração de regras de circulação entre países e que ia para a região do Alentejo que pior conheço, o litoral. Mas não vai escavar, pois não?, atirou-me com uma gargalhada. Não, claro que não, já me deixei disso há muito tempo, vou passear na praia e nas arribas. Muito bem, muito bem.

Foi uma boa conversa de despedida, vou guardá-la assim, com a gargalhada e os sorrisos. Não podíamos saber que não voltaríamos a estar juntos na mesma sala, acho que isso é uma coisa boa, ainda que a ausência me continue a doer. Aquele chavão do “não há ninguém insubstituível” não é verdade. O Francisco não se substitui. Tive um dos maiores privilégios na vida ao conhecê-lo. Agora só posso honrar-lhe a memória e tentar fazer como ele fazia. O que implica ser melhor profissional do que alguma vez fui. Devo-lhe isso.