Parte do meu trabalho é muito digital e pode, sem grandes dificuldades, ser feito à distância, excepção feita para as sessões de formação ou algumas reuniões muito específicas. É uma sorte, bem sei, mas é importante que se diga que o teletrabalho não é só replicar em casa o que se faz no gabinete da empresa. Há um conjunto grande de outras variáveis a ter em conta. Uma delas é juntar teletrabalho e tele-escola tudo ao mesmo tempo! Como é que a coisa resulta? E resulta para quem?

De onde vos escrevo, o meu escritório na cave de minha casa, tenho um ecrã que trouxe da empresa, ao qual tenho ligado o bendito MacBook Pro que agora me acompanha, tenho uma impressora e scanner, secretária com espaço, ferramentas necessárias para que o teletrabalho seja simples e eficiente e, acima de tudo, tive formação, muitas horas de formação, em diversas ferramentas e áreas que preciso para o trabalho (isto vai desde coisas mais “tech” como SQL e .NET, por exemplo, a coisas elaboradas como gestão de dados, estruturas de dados, desenvolvimento de aplicações, até chegar à utilização destas novas coisas que agora toda a gente tem que são os teams desta vida. Para me ligar à maravilhosa equipa da Sistemas do Futuro (e outras equipas com quem trabalho) tenho uma rede das boas. Tenho ainda a felicidade de ter à frente e atrás de mim duas estantes carregadas com bons livros.

A minha mulher, em teletrabalho também, tem computador fornecido também pela empresa onde trabalha, tem a seu cargo uma catrafada de papéis e leis e regulamentações e excepções às leis pelo estado de emergência em que vivemos. Partilhamos a impressora, a boa rede que temos em casa e as demais coisas que facilitam esta nova fase.

Tenho dois filhos que estão em tele-escola. Um no 6.º ano e outra no 3.º ano. Cada um deles tem um tablet e têm ao dispor, quando precisam, os computadores velhinhos do pai (que os guarda e trata bem). Têm um espaço em que podem estar isolados, atentos às aulas online. Têm, caso for necessário, a possibilidade de ver e rever (assim precisem), através da TV por cabo, as aulas da nova tele-escola do novo e muito útil programa #estudoemcasa. Têm professores, na sua larga maioria, excelentes que deram o seu melhor para que em 15 dias, repito 15 dias, pudessemos mudar a escola como ela não tinha sido mudada desde há muitos anos. Têm pai e mãe com capacidade e tempo para lhes dedicar atenção, com a compreensão das entidades onde trabalham. Têm, para orgulho sincero do pai e mãe, uma autonomia que me espanta constantemente. Têm livros.

Estas, meus caros amigos, são as condições ideais (não poderei dizer as mínimas, mas apetecia-me) que permitem, aqui em casa, juntar teletrabalho e tele-escola! Temos conseguido repartir a atenção entre tudo e ainda tivemos tempo para algumas pinturas nos muros do jardim (sim que ainda temos um espaço ao ar livre para arejar as ideias).

A questão é que estas condições só existem para alguns de nós, os mais afortunados, os que têm conseguido para si mesmos com maior ou menor esforço, as condições de vida e trabalho que permitem encarar tempos como este com relativa calma. Para muitas famílias este momento não é fácil. É, talvez, um dos maiores desafios que terão que enfrentar.

Começo pelas coisas mais fúteis, as materiais. Nem todos os alunos, agora em casa, têm sequer um computador para dividir com os pais, nem todos os pais têm as competências digitais necessárias para ajudar os filhos, uma impressora é algo que não existe na maior parte das casas, o acesso à net, com as condições mínimas, não é ainda universal (aliás este é um problema estrutural para a igualdade e acesso à informação que temos por resolver), a secretária e o espaço disponível também não são, estou certo, uma realidade em muitos lares por todo o país e, por fim, em quantas casas haverá livros?

No entanto, as que mais importam, são as mais complicadas de resolver. Quantos pais têm sequer a possibilidade de ter tempo para acompanhar os filhos? Quantos não estão preocupados com os seus empregos? Quantos têm agora que sair à procura de novos empregos? Quantos têm filhos que começaram este ano as aulas e não têm ainda uma autonomia mínima? E os que têm filhos com necessidades especiais de aprendizagem? E os pais e avós que não têm, apesar de todo o esforço, a capacidade de ajudar os filhos com determinadas matérias? E os que não têm professores à altura das circunstâncias excepcionais em que vivemos? E os que estudam em escolas que não têm disponíveis todas as ferramentas digitais necessárias nestes dias? Ou que não conseguiram, apesar do esforço, preparar esta mudança em tão curto espaço de tempo?

A mudança ou transformação digital de que tanto agora se fala é uma revolução bem mais ampla do que dar computadores e ligações à internet em larga escala. Implica bem mais do que estas condições materiais, essenciais como instrumentos, é certo, que todos mencionam, mas sim uma reflexão profunda sobre as condições básicas de vida e sobre o modelo de sociedade (e de trabalho, de escola, de cultura, etc.) que queremos para o nosso futuro. É uma questão ideológica que deve encontrar um debate político profundo, à escala europeia e universal, sem donos antecipados da verdade e debates infrutíferos entre a esquerda e direita democrática que só fazem crescer o populismo das suas franjas anti-democráticas.

Captura de ecrã do site Estudo em Casa
#estudoemcasa

Enquanto ainda estamos assoberbados pela realidade destes dias e não discutimos ainda esta mudança que por aí vem, gostaria de destacar um excelente exemplo do que de bom se fez neste muito curto período. Falo do #estudoemcasa. Um programa* que reativou a antiga Tele-escola (que ainda vi) para de forma democrática, em sinal aberto na RTP Memória, fazer chegar conteúdos e aulas a todos os que não têm as condições necessárias para acompanhar a escola pós COVID-19. Um enorme projecto que gostaria de agradecer a todos os que foram responsáveis por o erguer em tão curto espaço de tempo!

*Sim, aquilo pode ter erros, pode ter conteúdos a melhorar, mas foram 15 dias, senhores! Quinze!