A biblioteca de Alexandria era um dos mais importantes centros de conhecimento da antiguidade, guardava mais de meio milhão de livros e a sua destruição súbita pelo fogo representou um enorme retrocesso civilizacional.

Ou talvez não.

Talvez não houvesse só uma biblioteca em Alexandria, mas várias. Talvez meio milhão de obras seja um exagero, considerando o que sabemos e estimamos sobre o número de autores na antiguidade. Talvez o desaparecimento da biblioteca se deva a um processo de decadência com múltiplas causas e não a um único acontecimento catastrófico. Talvez o conteúdo da biblioteca importasse muito pouco para a evolução subsequente do conhecimento e das artes na Europa e no Médio Oriente. Não sabemos. Aquilo que não sabemos sobre a biblioteca de Alexandria é tão grande como os sonhos que tem alimentado.

E se, mesmo sem biblioteca, lhe conhecêssemos o catálogo?

Sabíamos com certeza a extensão da(s) biblioteca(s), sabíamos com mais rigor o número (e identidade) dos autores nela(s) representados. E, sobretudo, mesmo sem termos acesso ao conteúdo dos textos, sabíamos os títulos e os assuntos tratados e talvez isso tivesse sido relevante para a  evolução subsequente do conhecimento e das artes na Europa e no Médio Oriente.

Esta ideia tem estado a martelar-me a cabeça desde o incêndio do Museu Nacional no Rio de Janeiro. Ouvi a notícia na rádio em sobressalto enquanto tomava o pequeno almoço e, sem muito mais informação, saí de casa a pensar: “é um museu universitário, as bases de dados hão de estar num servidor qualquer no campus, não há de se ter perdido tudo!”. Ao longo do dia fui sabendo que não era assim. Fui lendo apelos vários à partilha de fotos e outros registos do acervo e do espaço expositivo, sempre a pensar: “não pode ser, não podemos estar dependentes disto para saber o que se perdeu, há de haver informação estruturada guardada em algum sítio!”. Um mês depois, na sessão especial dedicada à resposta do ICOM-CIDOC à situação, que teve lugar na sua Conferência Anual, a dimensão do problema atingiu-me em cheio como uma marreta.

Todos os que estávamos naquela sala somos oficiais do mesmo ofício: trabalhamos na gestão de informação e documentação em instituições que pretendem preservar a memória. Essas instituições são todas muito diferentes e estão em países tão díspares como a Austrália ou o Irão, passando por Portugal, pelo Chile, pela Alemanha, pela Nigéria ou os Estados Unidos. O que aconteceu no Museu Nacional, sabemo-lo dolorosamente, aconteceu como consequência de uma série de acontecimentos e (más) decisões que decorrem da atual situação económica, social e política do Brasil. Mas, nos restantes países representados naquela sala em Creta, algum de nós está mesmo livre de uma catástrofe que possa destruir os acervos das nossas instituições de memória?

A resposta é, obviamente, não. E não estou só a referir-me a desastres naturais, estou a referir-me também a este tempo em que vivemos, de tão grande mudança, que não nos dá garantias nenhumas que o país ou a instituição mais sólida e estruturada que conhecemos hoje não possa vir a ter a sua situação completamente alterada ainda antes da próxima geração.

Contudo, se os acervos podem não estar a salvo, a informação sobre os acervos tem que estar a salvo. Eu sei que a informação precisa de suporte e que os problemas que se colocam à preservação dos acervos podem também colocar-se à preservação dos suportes de informação. Mas é mais fácil garantir a cópia e a redundância da metainformação do que a salvaguarda dos objetos de informação. É difícil estruturar e dar sentido aos dados, mas há boa gente a trabalhar nisso há anos – muita dela no ICOM-CIDOC – e contamos com normas e terminologias que nos facilitam a vida. Podemos transferir a informação de um suporte para outro e o mesmo acontece com o formato em que a guardamos. A transmissão de informação é muito mais maleável do que a salvaguarda da materialidade das coisas que a suportam. No limite, como nos ensinou Ray Bradbury, não precisamos mais do que a nossa mente para preservar a memória do que realmente importa.

Perder objetos e perder a informação sobre os objetos é morrer duas vezes. Quando alguém morre afirmamos recorrentemente que essa pessoa não deixa de existir e isso não é só para confortar quem lhe sobrevive: já não há ninguém que precise de ser confortado pela morte do fundador de Alexandria e não temos dúvidas da existência de Alexandre III da Macedónia. Porque não percebemos que acontece o mesmo quando se perde a materialidade das coisas? Porque se todos os meus mortos continuam a existir na memória que eu tenho deles, também as coisas podem continuar a existir na minha memória depois de serem destruídas pelo fogo ou pela incúria dos homens. E podem continuar a existir na memória dos outros, se eu a registar e transmitir.

É essa a nossa obrigação como oficiais deste ofício de documentar e gerir informação. É para isso que devemos trabalhar todos os dias, para que possamos dizer com toda a segurança: se um item aparece nos nossos registos… é porque existe.

https://youtu.be/nsLGyEsute4&w=550

 Maria José de Almeida

Maria José de Almeida é Doutora em Arqueologia pela Universidade de Lisboa.

Até 2016 trabalhou nos municípios de Santarém e Cascais, desenvolvendo ações de arqueologia preventiva e gestão de coleções de bens arqueológicos. Foi responsável pela implementação do Sistema de Informação dos Museus de Cascais e coordenou a integração do mesmo na plataforma de Sistema de Informação Geográfica da autarquia. Fez parte dos corpos gerentes da Associação Profissional de Arqueólogos (APA) desde 2002, tendo sendo presidente da direção no triénio 2007-2009. É membro do Grupo de Trabalho Sistemas de Informação em Museus da Associação Portuguesa de Bibliotecários, Arquivistas e Documentalistas (BAD).

Atualmente integra a equipa da Direção de Serviços de Inovação e Administração Eletrónica da Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB).

Curriculum detalhado aqui.