Museu das Descobertas – um pequeno contributo

Museu das Descobertas – um pequeno contributo

Museu das Descobertas, Museu da Viagem, Museu da Interculturalidade de Origem Portuguesa, Museu do Achamento, Museu de tudo e mais alguma coisa e de nada ao mesmo tempo. É o tema do momento na nossa área e, ao contrário de outras situações mais inquietantes, ocupa até o tempo à letra de alguns dos mais reconhecidos cronistas da nossa praça, como Miguel Sousa Tavares.

Não me levem a mal este primeiro parágrafo, eu acho que não há nenhum assunto, nenhum mesmo, que não mereça um amplo debate público. Acho até que o debate que é trazido pela proposta da Câmara de Lisboa, prevista pelo que percebi no programa de Fernando Medina, da criação de um Museu das Descobertas ou Museus dos Descobrimentos tem um conjunto de pontos positivos que me agradam muito, começando pela forma elevada com que é travado, apesar das diferenças extremas dos argumentos apresentados e acabando na forma como o debate nos faz pensar criticamente sobre aquilo que nos foi ensinado (e julgo ainda ser) como os Descobrimentos Portugueses ou a Expansão Marítima Portuguesa e que tínhamos como um cadeirão no curso de História.

 

Um breve contexto

Até agora, e salvo algum falha nas diferentes partilhas e fontes, temos os artigos de Matilde Sousa Franco no Observador (aqui o primeiro e aqui o segundo), o texto do Luís Raposo no Público, um post de Luís Filipe Pimentel no Facebook, um post da Maria Vlachou, a mensagem do Pedro Pereira Leite, outro post da Maria Isabel Roque, o artigo do Miguel Sousa Tavares no Expresso (vertido aqui), o artigo do Paulo Jorge Sousa Pinto no Público, um outro artigo do Pedro Lains e, até uma edição do podcast do Observador Conversas à Quinta, com a visão de Jaime Gama e de Jaime Nogueira Pinto, moderados por José Manuel Fernandes, para a qual fui alertado pelo Luís Raposo na Museum já depois de ter começado este post. São muitas opiniões (o que é bom) a que se junta a Carta Aberta, assinada por um conjunto significativo de investigadores, que se opõem ao nome “Museu das Descobertas”.

Em todos eles, sem excepção, encontro argumentos válidos para a utilização ou negação do nome. Em alguns daqueles textos, nomeadamente o do Luís Raposo e da Maria Vlachou, encontro argumentos com que me identifico claramente para questionar a criação de um novo museu (que aliás me parece ser entendido como mais um entreposto turístico do que um museu) numa altura em que os museus portugueses, públicos ou privados, sofrem dificuldades agonizantes para conseguir manter as portas abertas apesar das constantes subidas nas estatísticas de visitantes.

Em todos eles vejo também a preocupação de lidar com os aspectos positivos e negativos de uma época em que Portugal teve um papel de destaque no mundo porque, fruto de um conjunto de circunstâncias muito específicas, se virou para onde percebeu ser possível crescer e competir com as nações europeias mais fortes. Aspectos positivos e negativos que podem muito bem, independentemente do nome de um museu que os pretenda debater e questionar, ser contados sem pudores e usados para tratar dos mesmos temas (principalmente os negativos) que ainda prevalecem no seio da nossa sociedade sem qualquer debate.

Vejo também, na maior parte deles, ideias excelentes, propostas concretas, visões de museologia contemporânea com que me identifico, nomeadamente a seguinte proposta da Maria Vlachou:

Sei que esta é uma história que se inicia no século XV, cujas consequências, boas e más, chegam aos nossos dias. É o presente e o futuro que se deve debater, olhando para o que foi o passado. É o presente e o futuro que se deve discutir com todos os que se sentem tocados pela história e pela actualidade.

Mas também me revejo, por completo, nesta afirmação da Maria Isabel Roque:

Mais do que a criação de um novo museu e da discussão acerca do nome, importa dar aos museus existentes os meios humanos e financeiros necessários para que possam apresentar e comunicar as respetivas coleções, articulando-se com a investigação académica na elaboração dos discursos; dar-lhes os meios necessários para repensar os modelos de musealização, definir redes e conexões entre espaços museológicos e reabilitar os espólios ignorados ou esquecidos.

E no mesmo sentido, parece-me que a criação deste museu, ou melhor, de um qualquer museu que pretenda, com a melhor das intenções, explorar o contexto dos Descobrimentos é completamente extemporânea. E tenho dois argumentos que me fazem pensar desta forma.

 

Dois argumentos a considerar

O primeiro prende-se com a actual situação dos museus em Portugal. Vivemos, apesar das promessas eleitorais do actual Primeiro Ministro, um dos momentos mais infelizes do sector. Há, apesar do que se vê nas estatísticas de visitantes, um desinteresse completo na resolução dos problemas dos museus. São orçamentos ridículos, quadros de pessoal insuficientes, fechados e envelhecidos, uma lei quadro sem aplicabilidade, a Rede Portuguesa de Museus reduzida a nada e um Ministério da Cultura que não tem, não expressa, nem tem a intenção de criar, muito menos executar, uma Política Museológica Nacional, resumindo-se a tratar de forma esporádica e errática de alguns dossiers mais prementes.

Esclarecendo, ou melhor, definindo esta política poderiamos pensar na criação de museus. Até na criação de um museus dos descobrimentos, da expansão, ou como lhe quiserem chamar, mas poderíamos pensar não num museu municipal (sim que este será um museu da câmara, não é) e sim num museu de âmbito nacional ou mesmo internacional. E já agora, pensar em colocar este museu, não em Lisboa (que já tem museus suficientes na minha opinião), mas sim no Algarve que apesar do esforço de um conjunto de museus municipais muito relevantes, mesmo a nível internacional, e do trabalho notável da Rede de Museus daquela região, não tem qualquer Museu Nacional e tem uma ligação umbilical com o tema.

Desembarque de Cabral em Porto Seguro

Desembarque de Cabral em Porto Seguro (óleo sobre tela), autor: Oscar Pereira da Silva, 1904. Acervo do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
[Public domain], from Wikimedia Commons

O segundo tem a ver com uma questão mais prática. Assim de momento, para contar a(s) história(s) dos Descobrimentos, precisaríamos de contar com as colecções de um conjunto significativo de instituições. Não só as do MNAA, como o seu director faz questão de lembrar, mas também as que estão na Universidade de Coimbra (no Museu da Ciência), no Museu do Azulejo, no Museu de Lisboa, no  Museu dos Coches, na Torre do Tombo, na Casa do Infante, nos Jerónimos, bem como noutros museus do país e em museus de outros países, desde logo do Brasil, Angola, Moçambique, S. Tomé, e outros da Lusofonia, mas também em museus na Índia, Japão e muitos outros países a que viagem nos levou.

Sem elas, mas também sem o “contemporary collecting”, que a Maria refere e muito bem, isto é, as colecções criadas/coletadas/incorporadas na actualidade que se cruzam com a herança dos descobrimentos, não seria possível contar uma história verdadeiramente global, com diversas visões, a partir de diversas culturas e não só da “portuguesa” (se é que isso ainda possa existir num mundo em que as culturas são tão influenciadas entre si) onde todos os intervenientes pudessem sentir reflectidas as suas conquistas, angústias, derrotas, confrontos, retrocessos, etc. Um museu com lado A e lado B que nos daria a possibilidade de ouvir cada lado e aprender ou acrescentar conhecimento e mais lados, ou seja, não um museu diplomático, mas sim um museu de narrativas. Não de compromissos, mas sim da verdade baseada em factos científicos e provas documentais (as colecções que o suportariam e a sua documentação, lá está).

Ora neste segundo ponto, a grande dificuldade que antevejo, para este Museu das Descobertas, ou lá como o queiram chamar, é a constituição da sua colecção. Como se faria? Seria apenas constituída por representações digitais dos objectos originais, contextualizadas por narrativas digitais construídas pela investigação, ou dadas a construír ao público? Ou passaria por um processo de depósitos, empréstimos, compra e outras formas de incorporação na C. M. de Lisboa? Será que queremos fazer isto? Será que os Museus atrás referenciados e outros, estariam na disponibilidade de “perder” algumas das suas melhores peças para este? Constituiria a CML uma nova colecção com base no “contemporary collecting” atrás referido? E a narrativa histórica contextual? Não é claro para mim como o fazer e por isso este argumento para ser contrário à proposta.

 

A importância do debate

No entanto, julgo que o debate é estimulante e pode trazer para o sector uma visibilidade que há muito não nos é dada, mesmo quando, e insisto no mesmo ponto, alertamos para os efeitos graves dos últimos tempos de governação sem qualquer atenção por parte dos media ou dos “opinion makers” com mais voz.

Acho, concordando com o já dito pelo Luís Raposo, que é tempo de todos nós profissionais do sector, expressarmos de forma audível a nossa opinião relativamente a estes temas. Não ter voz num debate com o impacto que este tem no momento, é contribuir para enfraquecer a qualidade das decisões que virão a ser tomadas, tendo em conta o contributo informado e científico que podemos dar.

Para onde vamos? Ou melhor para onde queremos ir

Para onde vamos? Ou melhor para onde queremos ir

O rei nu na cultura, post scriptum e uma boa visão como sair da crise em que mergulharam os museus são excelentes contributos para uma reflexão maior sobre o caminho (chamar-lhe caminho até me parece estranho) que segue a cultura e, particularmente, os museus em Portugal. Aconselho a leitura atenta a todos e confesso que subscrevo, quase literalmente, os excelentes artigos de Raquel Henriques da Silva, Maria Vlachou e Luís Raposo. Antes de lá irmos, deixem que recorde bons tempos.

Trabalhar num museu nunca foi um sonho de criança. Foi mais um feliz acaso do destino que me retirou, felizmente, a possibilidade de passar anos a penar num banco ou empresa de seguros. No entanto, quando comecei a trabalhar no Museu de Aveiro percebi que era exactamente aquilo que eu procurava. Apaixonei-me pelo museu, pelo trabalho do museu, pelas perspectivas que se abriam na conjugação entre a investigação em História e a partilha do trabalho que daí resultava. Nesses anos, se bem se recordam, davam-se os primeiros passos para a discussão daquilo que viria a ser concretizado em 2000 na estrutura de projecto, dependente do IPM, para a criação da Rede Portuguesa de Museus e viviam-se tempos em que o futuro dos museus se construía com bons profissionais, formação, investimento, alguma estratégia e planeamento e, ainda que algum desbaratado, algum dinheiro para investir em estruturas (na criação de novos museus ou requalificação de outros existentes). Não se pode afirmar que era um tempo de vacas gordas, tal nunca aconteceu nos museus portugueses, mas era um tempo de esperança, de discussão aberta, de debate, de partilha, no qual também se cometeram erros (alguns graves e sem solução ainda), mas se criaram as bases para a aprovação por unanimidade e publicação da Lei Quadro dos Museus.

Depois de tempos como aqueles seria expectável, pelo menos, que lhes seguiriam novas conquistas, melhores condições, mais participação dos profissionais em decisões estruturais, mais e melhor formação, equipas em consonância com as reais necessidades dos museus, das suas colecções e das suas audiências, a aplicação da Lei Quadro dos Museus, uma rede portuguesa de museus forte e em expansão, colecções estudadas e comunicadas devidamente, o foco dos museus e das suas missões centrado nas suas audiências, entre outras. Mas, em boa verdade, o que temos não é uma realidade melhor. As condições são piores, a participação dos profissionais de museus em decisões estruturais é “esquecida”, a formação é focada apenas em estudos avançados (mestrados e doutoramentos) esquecendo, quase por completo, a formação técnica, as necessidades de pessoal são completamente negligenciadas pelas tutelas, e os reflexos disso são notórios em muitos museus, a rede portuguesa de museus mantém-se à tona graças ao enorme esforço de um conjunto extraordinário de colegas muito persistentes e competentes, o estudo das colecções, a sua comunicação e o foco nas audiências acabam por ser prejudicados pelo contínuo desinvestimento no sector e pela endémica dificuldade em definir estratégias e planos de médio e longo prazo.

Em conversas com amigos de outras áreas sobre os problemas do sector perguntam-me muitas vezes porque me esqueço das “culpas” das pessoas que aí trabalham. A minha resposta é sempre a mesma: “nunca tivemos uma geração tão competente e bem formada como a actual a trabalhar nos museus e património cultural. Mas depende pouco da sua competência, infelizmente, a definição de uma política para o sector”. E tento explicar-lhes: “Claro que há gente incompetente (há em todos os sectores), mas a maior parte é competente, sabe fazer e sabe, conforme podemos ver por alguns exemplos que estão em lugares de chefia, liderar, planear, definir estratégia e mandar fazer! O grande problema, na minha opinião, é que não é tida em conta, como se vê, em grande parte, nas grandes polémicas noticiadas (Crivelli, Coches, Miró, Museu Nacional de Arqueologia, greves, etc.), na definição de uma política cultural de museus definida para além da castradora legislatura de 4 anos. Aliás a “festa” do Museu dos Coches é ao brio e competência da equipa do museu e outros técnicos da DGPC que se deve, não a uma decisão do Ministério da Economia ou a uma política cultural séria.

A nossa “culpa” será não exigirmos, de forma mais corporativa se quiserem, a definição de uma política de médio e longo prazo a partir da qual se possam traçar estratégias, planos, objectivos que permitam uma avaliação séria e fundamentada do desempenho de todos envolvidos no sector. Podemos até pensar que é uma visão ingénua, mas não será exequível?

Se houvesse uma política cultural forte, pensada de forma inclusiva não evitaríamos muitos dos nossos problemas?

Algumas reflexões sobre este assunto aqui, aqui e aqui.

E este artigo na Visão também me parece interessante e revelador!

E um artigo também muito interessante da Maria Isabel Roque sobre o (não) Museu dos Coches no a.mus.arte!

O anunciado adeus

O anunciado adeus

Perdoem-me o título dramático deste post, mas não me recordo de outro que assente tão bem para um texto onde falamos sobre a (mais que anunciada) saída do Dr. Luís Raposo da direcção do Museu Nacional de Arqueologia. Já em Janeiro tinha sido anunciada como podem ver aqui e aqui, mas a decisão não se concretizou porque foi dado provimento ao recurso que interpôs junto da Secretaria de Estado da Cultura. No entanto, com a entrada em vigor da nova lei orgânica da DGPC, diz o bom senso que todos os lugares de direcção devem cessar funções e deve a tutela abrir concursos para os respectivos cargos. Porém, o que é comum neste tipo de situações é recorrer à nomeação temporária das pessoas que cessam funções para gerir o museu durante o período em que decorre o concurso. Imaginam os meus caros amigos o que aconteceu no caso do Director do MNA (Luís Raposo)?

Nem mais. Foi informado que não continuará a desempenhar aquelas funções nem sequer no período transitório.

Quanto mais não fosse pelo respeito pelo excelente trabalho que Luís Raposo desempenhou no MNA, não raras vezes com poucos recursos, durante os 15 anos à frente da sua direcção, seria de esperar que o bom senso imperasse e aguardassem um pouco mais pela sua saída.

Ao Dr. Luís Raposo queria daqui endereçar um cumprimento e reconhecimento pelo trabalho que desempenhou no MNA e pela abertura e disponibilidade que sempre demonstrou comigo.