SPECTRUM e CIDOC CRM

SPECTRUM e CIDOC CRM

Na discussão sobre documentação de museus e na construção dos sistemas de informação que a suportam é comum surgir, a determinado momento e principalmente nos colegas menos experimentados nesta área, a questão da enorme profusão de normas existentes (sempre comparando com bibliotecas e arquivos, ainda que de forma errada) para este trabalho específico nos museus. Em algumas conferências do CIDOC tive sempre, directa ou indirectamente, de discutir este assunto com novos colegas e em 2008, em Atenas, fui eu que me interroguei porque é que esta gente tem um apetite voraz pela criação de normas. É realmente um abuso, mas tem explicações lógicas (históricas e científicas) que não vou aqui escalpelizar, mas que denotam a evolução histórica da documentação em museus (e das ciências e técnicas que a coadjuvam) e a importância dada pela comunidade anglo-saxónica a esta matéria, em relação a outras comunidades científicas e profissionais.

Esta profusão de normas, que muitas vezes colidem na procura de solução para o mesmo problema, não é um grande problema para o sector, quando as conhecemos e conhecemos o seu âmbito, mas obriga a mais trabalho na procura da que serve os nossos interesses ou na realização de “mapeamentos” entre duas (ou mais) normas, um trabalho que tem sido feito ao longo dos anos e que pode ser, no caso do CIDOC CRM, consultado com detalhe aqui.

Apesar desta situação há um consenso generalizado, sustentado por anos de prática nos museus e pelos seus profissionais, sobre a relevância do CIDOC CRM (uma norma que procura definir uma estrutura formal e as definições que possibilitam a descrição das relações e conceitos, implícitos e explícitos, na documentação do património cultural) e da SPECTRUM (uma norma que define procedimentos e estrutura de documentação para a gestão das colecções e da sua documentação) para esta área. São duas normas cada vez mais adoptadas e estudadas e têm dado provas da sua fiabilidade através de excelentes resultados na documentação de colecções por elas suportadas. Eu serei suspeito para falar sobre o assunto, mas numa rápida pesquisa por SPECTRUM ou por CIDOC CRM no google permitirá que tirem vocês as conclusões sobre a importância da duas.

Hoje, ou melhor ontem, recebemos a (excelente) notícia da criação de uma extensão para o SPECTRUM no CIDOC CRM através de uma comunicado do CIDOC que pode ser lido na íntrega aqui. Para muitos de vocês o assunto poderá ser aborrecido, mas eu acho que este será um importante marco na história da documentação do património cultural que trará, a breve prazo, enorme benefícios para as colecções, para os profissionais de museus, para os museus e acima de tudo para as audiências/públicos dos museus.

Queria destacar aqui as declarações (que podem ler no comunicado) de Stephen Stead, Dominic Oldman (CIDOC CRM) e Nick Poole (Collections Trust) sobre este importante acordo.

This agreement opens the door for a new focus on the importance of cultural heritage documentation. Many documentation strategies still focus on internal processes and traditional catalogue information, but new digital audiences require a different approach and different types of knowledge generated by museum experts and researchers. Moving to the CIDOC CRM knowledge representation system will provide the SPECTRUM community with a way of connecting museum experts with wider digital audiences and strengthening the relevance of museum knowledge in our society.

Stephen Stead e Dominic Oldman

The agreement between the Collections Trust and the CIDOC CRM SIG represents a major step forward in harnessing the power of technology to open up cultural heritage for new audiences. Building on nearly 20 years of standardisation and professionalization in Collections Management, uniting these two initiatives will help unlock the richness and value in heritage collections for generations to come. I welcome this development and look forward to a successful collaboration.

Nick Poole

Aqui está uma boa notícia e perspectivas de mais trabalho pela frente.

© Imagem: daqui.

Os custos da digitalização do património e a normalização

Os custos da digitalização do património e a normalização

A digitalização do património cultural é um tema que me interessa muito. Já o tinha abordado, embora sobre diferentes perspectivas, aqui, aqui e aqui. Hoje retomo o tema tendo como pretexto a leitura do excelente artigo de Martin Doerr e de Dominic Oldman, intitulado “The Costs of Cultural Heritage Data Services: The CIDOC CRM or Aggregator formats?“, publicado no blog de Dominic Oldman (que recomendo vivamente). Martin Doerr é um investigador com muita experiência nesta matéria (façam uma pequena pesquisa no google e perceberão) e Dominic Oldman é “Deputy Head of Information Systems” no British Museum e é o investigador principal no projecto Researchspace onde procura desenvolver um ambiente colaborativo de investigação online através da utilização de conjuntos de dados ricos semanticamente. Algo que perceberão melhor depois da leitura deste post (e para os com mais conhecimentos técnicos passarem por aqui) e de assistirem a estes vídeos:

http://youtu.be/HCnwgq6ebAs&w=500

http://youtu.be/HbYgaxctGV8&w=500

Voltando então ao artigo sobre os custos da digitalização do património e os custos associados, gostava que pudessem reflectir no seguinte excerto do mesmo onde os autores mencionam a necessidade de uma representação do contexto adequada, em substituição da tradicional disponibilização de dados “principais” e descontextualizados sobre os diversos objectos, como datas, medidas, autores, informação de conservação, etc., indo de encontro ao pedido por cada um dos modelos de dados dos agregadores de informação (ver como exemplo o EDM da Europeana).

The institution actually curating content must document it so that it will be not only found, but understood in the future. It therefore needs an adequate [1] representation of the context, content and objects come from and their meaning. This representation already has some disciplinary focus, and ultimately allows for integrating the more specialized author knowledge or lab data. For instance, chronological data curves from a carbon dating (C14) lab should be integrated at a museum level (2) by exact reference to the excavation event and records, but on an aggregator level (3) may be described just by a creation date.

Na opinião dos autores, com a qual eu concordo absolutamente, o custo da digitalização do património cultural poderia ser consideravelmente reduzido, se as instituições que providenciam os dados aos diferentes agregadores (museus, arquivos e bibliotecas) centrassem a sua atenção e esforços na criação de dados de acordo com o definido no CIDOC CRM (ISO 21127:2006). A principal razão para o fazerem prende-se com o facto de o CIDOC CRM possibilitar a definição de uma estrutura semântica de referência que possibilita, segundo os autores, a exportação da informação para qualquer tipo de modelo de dados definido pelos agregadores, tendo como vantagem, no futuro, a possibilidade de criar melhores sistemas de pesquisa e de investigação colaborativa na área do património cultural. Sendo uma possibilidade que nos agradará a todos (imagino eu), esta interessante ideia é concretizada (com as limitações tecnológicas actuais) na ferramenta que os vídeos atrás demonstram, no entanto, a questão principal mantém-se: será que os museus (e já agora os arquivos e bibliotecas) percebem que o trabalho que têm na documentação e gestão das suas colecções pode ser dificilmente reutilizável no futuro, caso não comecem a conhecer e trabalhar de acordo com o definido no CIDOC CRM?

É uma questão importante a ter em conta no planeamento dos projectos de documentação de qualquer colecção, não vos parece? Comentem e partilhem, se acharem o tema interessante.

© imagem: daqui.

Da verdade das coisas

Da verdade das coisas

Para descanso de consciência uma prévia declaração de interesses torna-se obrigatória. Trabalho na empresa Sistemas do Futuro e sou parte de uma equipa que trabalha, desde 1996, a desenvolver software (bom e testado em quase duas centenas de clientes) de gestão e documentação de património cultural (móvel, imóvel e imaterial) e natural que é a base de muitos dos repositórios digitais de colecções de museus e outras instituições que têm a seu cuidado a nossa herança patrimonial.

Posto isso, vamos ao que motivou o clique no adicionar mais um post aqui no Mouseion.

Hoje tive conhecimento da newsletter onde a empresa BOND, actual detentora do software Matriz e concorrente da Sistemas do Futuro, divulga a versão 3.0 do software desenvolvida em parceria com o extinto Instituto de Museus e Conservação, fruto de aquilo a que um responsável do referido instituto designou como uma parceria público-privada de sucesso e sem peso no erário público.

A determinado ponto deste documento é dito “As suas características absolutamente inovadoras – em termos conceptuais, tecnológicos e de operabilidade –, bem como o facto de ser o único sistema no seu género em Língua Portuguesa desenvolvido em conformidade com a Norma ISO 21127:2006, concorrem para que o Matriz 3.0 se constitua como um sistema de informação de vanguarda a nível nacional.” e esta informação peca por estar errada por duas ordens de razão: a primeira tem a ver com o facto de tal afirmação só poder ser verdade se houvesse alguma entidade que certificasse a utilização da referida norma por qualquer sistema de gestão e documentação de património e indicasse apenas o Matriz como único software certificado no mercado lusófono (caso não conheçam a norma, poderão consultar o site do CIDOC CRM onde se encontra toda a informação sobre aquela norma); a segunda, decorrente da primeira, tem a ver com o simples facto de haver no mercado pelo menos dois sistemas que seguem, ou dizem seguir, as orientações da referida norma: os desenvolvidos pela Sistemas do Futuro (que tem inclusivamente um dos seus colaboradores a desenvolver um projecto de doutoramento em museologia sobre aquela norma)  e o Index Rerum (segundo podemos perceber no site sobre este software usado pelos museus da Universidade do Porto).

Em todo o caso é estranho que o software de referência do IMC, publicitado inclusivamente no próprio domínio do IMC, se diga o único que responde a uma norma que tem como princípio fundamental a interoperabilidade entre sistemas através da promoção de uma semântica comum e depois necessite de cobrar pela migração das bases de dados do IMC que usavam, pasme-se, uma versão anterior do mesmo sistema.

Não quero no entanto que me interpretem mal. O referido software estará em conformidade com a ISO21127:2006 se assim o afirmam. O que não podem afirmar é que os restantes não estão.

Em todo o caso estas questões poderiam (deveriam) ser evitadas se houvesse da parte da Rede Portuguesa de Museus* uma avaliação dos sistemas, semelhante à que a Canadian Heritage Information Network faz, usando uma lista de critérios que pudessem dar uma classificação objectiva a cada um dos sistemas e assim certificar a sua utilização e a sua compra pelos museus interessados.

* infelizmente ferida de morte com as últimas e incompreensíveis decisões sobre a excelente equipa, mas sobre isso falarei num outro post.